O autor Scott Wallace e uma equipe de fotógrafos viajam ao coração da Amazônia equatoriana, onde a indústria do petróleo assedia uma das últimas fronteiras selvagens da Terra
Das bromélias, samambaias e orquídeas abrigadas nos galhos da sumaúma a 50 metros do solo até a onça-pintada que caça lá embaixo, o Parque Nacional Yasuní, no Equador, é o lar de incontáveis espécies. Todas estão ameaçadas pela prospecção petrolífera.
As folhas ainda gotejam da chuvarada
noturna quando Andrés Link põe a mochila nas costas e sai no frio úmido do
amanhecer. A floresta já é uma algazarra de grasnados e chilreios – o rugido
gutural de um bugio, o repique seco de um pica-pau, guinchos de micos-de-cheiro
que se perseguem de galho em galho. Ao longe, um estranho cântico começa, vai
sumindo, depois torna a ganhar força. “Escute!”, diz Link, agarrando meu braço.
“Sauás. Dois, cantando em dueto. Está ouvindo?”
Essa celebração é a trilha sonora que
Link ouve toda manhã em seu percurso para o local que talvez abrigue a maior
biodiversidade do planeta. Link, primatologista da Universidade de Los Andes,
estuda o macaco-aranha, e está indo até um saleiro, a meia hora de caminhada,
onde esses primatas costumam se congregar.
Gigantescas
sumaúmas e árvores do gênero Ficus escoradas em raízes tabulares
erguem-se como colunas romanas direto para o dossel florestal. Nas fecundas
bifurcações de seus galhos, orquídeas e bromélias sustentam comunidades de
insetos, anfíbios, aves e mamíferos. Mata paus enroscam-se em seus troncos em
um abraço sufocante. Há tanta vida aqui que até uma poça rasa abriga um vaivém
de peixinhos.
Descemos uma encosta e deparamos com
uma floresta cravejada de paxiúbas, conhecidas como palmeiras andantes porque
suas raízes escoras de 1 metro de altura lhes permitem mudar de lugar em busca
de luz e nutrientes. Essa é uma dos milhões de adaptações evolucionárias em
curso na Estação de Biodiversidade Tiputini (EBT), administrada pela
Universidade San Francisco de Quito em 650 hectares de mata virgem na orla do Parque
Nacional Yasuní, que engloba quase 9 800 quilômetros quadrados de hábitat
primordial de floresta pluvial no leste do Equador. “Você poderia passar a vida
inteira aqui e se surpreender com alguma coisa todo dia”, diz Link. Existem dez
espécies de primata na floresta ao redor da EBT, e uma variedade de aves,
morcegos e rãs maior que em quase qualquer outra parte da América do Sul.
Sauá (Callicebus discolor), 33 centímetros
A localização de Yasuní nutre essa
abundância. O parque está encravado na intersecção dos Andes com a linha do
equador e a Floresta Amazônica, um cerne ecológico em que convergem riquíssimas
comunidades de plantas, anfíbios, aves e mamíferos. Ali chove quase todo o dia,
o ano inteiro, e mal se notam as mudanças de estação. Luz solar, calor e
umidade são constantes.
Essa parte da Amazônia também é o lar
de duas nações indígenas, Quíchua e Waorani, que vivem em aldeias ao longo das
estradas e dos rios. O primeiro contato pacífico entre os waoranis e
missionários protestantes aconteceu em fins dos anos 1950. Hoje, a maioria das
aldeias ocupa-se do comércio e do turismo com o mundo exterior, e o mesmo fazem
seus antigos inimigos tribais, os quíchuas. Mas dois grupos waoranis deram as
costas a esses contatos, e preferem vaguear pelas terras altas da floresta, na
chamada Zona Intocável, criada para protegê-los. Infelizmente, a zona que
coincide, em parte, com o setor sul de Yasuní não inclui toda a área de uso
tradicional dos dois grupos, e até 2009 houve ataques desses guerreiros nômades
contra colonos e madeireiros.
Bem abaixo da superfície, Yasuní
guarda outro tesouro que representa uma ameaça urgente à preciosa rede vital da
superfície: o petróleo bruto da Amazônia, centenas de milhões de barris
intactos. Já há anos que petroleiras exploram concessões no território do
parque, pois interesses econômicos levaram a melhor sobre a conservação na luta
pelo destino de Yasuní. Cinco concessões ativas, no mínimo, cobrem o setor
norte, e, para um país pobre como o Equador, é quase impossível resistir às
pressões na exploração dessa riqueza. Metade das receitas de exportação do país
já provém do petróleo, quase tudo extraído das províncias orientais da
Amazônia.
Bugio (Alouatta seniculus), 48 centímetros
Em uma proposta apresentada em 2007, o
presidente Rafael Correa sugeriu deixar intocados os 850 milhões de barris de
petróleo que, segundo estimativas, existem no extremo nordeste de Yasuní, em
uma área conhecida como Bloco ITT (as iniciais dos três campos petrolíferos do
local: Ishpingo, Tambococha e Tiputini). Em pagamento por preservar a vida
selvagem e impedir que estimados 410 milhões de toneladas métricas de emissões
de carbono geradas por combustível fóssil entrem na atmosfera, Correa pediu ao
mundo que intensifique a luta contra o aquecimento global. E requer uma
compensação de 3,6 bilhões de dólares, cerca de metade do que o Equador
faturaria explorando os recursos aos preços de 2007. O dinheiro seria usado
para financiar energia alternativa e o desenvolvimento de comunidades.
Uma revoada de periquitos de asas cor de cobalto desce sobre as margens barrentas de uma lagoa. Cientistas identificaram 600 espécies de ave no parque, que ocupa quase 9.800 quilômetros quadrados de floresta úmida no leste do Equador
Aclamada como um marco no debate sobre
a mudança climática, a chamada Iniciativa Yasuní- ITT ganhou enorme aceitação
no Equador. Pesquisas de opinião no país mostram que cada vez mais Yasuní vem
sendo considerado um tesouro ecológico a ser protegido. Mas a resposta
internacional à iniciativa tem sido morna. Em meados de 2012, apenas 200
milhões de dólares haviam sido prometidos. Correa protestou com ultimatos
irritados. Com a iniciativa empacada e Correa alertando que o tempo se esgota,
a atividade na fronteira petrolífera continua a avançar pelo leste do Equador,
dentro dos limites de Yasuní.
Meia hora depois de partir do
laboratório da EBT, Andrés Link chega à entrada de uma caverna baixa no fundo
de uma ravina. Naquela manhã, os macacos não vieram. “Têm medo de predadores”,
conclui ele, olhando o céu cor de leite. “Quando o dia está encoberto, eles não
gostam de descer.” Os macacos podem temer as onças-pintadas ou os
gaviões-reais, mas Link pensa em uma ameaça mais duradoura aos animais: o
avanço da fronteira petrolífera. “Você vê que é grande o interesse em encontrar
petróleo”, diz. “Meu medo é que basta pouca coisa para se começar, e depois…” Sua
voz some, como se a ideia fosse dolorosa demais para ser enunciada.
Mico-de-cheiro (Saimiri Sciureus), 30,5 centímetros
No laboratório da EBT nessa mesma
noite, sento-me na varanda com o diretor-fundador da reserva, Kelly Swing.
“Sentimos a pressão”, diz Swing. “Está tão perto que nos enerva.”
As instalações mais próximas se
encontram apenas 13 quilômetros a nordeste, em uma concessão operada pela
estatal Petroamazonas. Cientistas dizem a Swing que sempre ouvem a zoada dos
geradores quando estão na floresta, e que helicópteros voam baixo e espantam os
animais que eles estudam. Swing receia que o colapso da iniciativa possa ser um
golpe nos esforços de conservação, desencadeando uma onda de exploração
petrolífera que se espalhe na metade sul de Yasuní e talvez até invada a Zona
Intocável.
Macaco-aranha (Ateles Belzebuth), 51 centímetros
Autoridades equatorianas garantem que
a extração do petróleo pode ser feita com responsabilidade, inclusive em
hábitats sensíveis. Afirmam que as práticas atuais são bem superiores aos
métodos muito poluentes usados nos anos 1970 e 1980; naquela época, a gigante
americana Texaco teria deixado áreas contaminadas que enredaram a Chevron, a
companhia controladora, em uma ação de bilhões de dólares movida por
comunidades indígenas. Mas o desenvolvimento tem consequências bem mais
abrangentes para ambientes ricos em espécies, diz Swing, a começar pelos
milhões de insetos, muitos, sem dúvida, desconhecidos da ciência, que são
incinerados toda noite nas ondulantes chaminés petrolíferas. “Em florestas
afetadas pela exploração de petróleo, talvez morram 90% das espécies no entorno
dos trechos desmatados”, diz ele.
Alguns dias depois, sigo para o leste
sob a garoa noturna com um grupo de biólogos da Wildlife Conservation Society
(WCS), a bordo de um barco que desce o rio Tiputini, que coleia parte da
fronteira norte do parque nacional. Exceto pelo ronco do motor de nosso barco,
o rio parece livre da presença humana. Isto é, até que fazemos uma curva e
damos de cara com uma longa barcaça motorizada parada na margem. O lugar
fervilha de operários de capacete e botas de cano alto, e a terra vermelha
exposta está toda escalavrada por pneus de tratores. Um talho na margem oposta,
largo, vermelho-sangue, dá a impressão de que a estrada pulou o rio por mágica
e entrou no parque por vontade própria. Empunho a câmera para uma foto, mas
dois soldados berram da barcaça: “É proibido fotografar!”
Os funcionários de macacão azul e
capacete não abrem a boca quando atravessamos o lamaçal sugador de botas e
entramos na barcaça. Mas um homem alto e troncudo me estende a manzorra e me
recebe com cordialidade. “Sou um dos homens maus”, adianta-se ele em inglês,
rindo, antes mesmo de eu saber seu nome. Robin Draper, de 56 anos, parece tão
surpreso com nosso aparecimento súbito quanto nós com toda a operação. “Estamos
aqui há semanas, e seu barco é o primeiro que desce o rio”, diz.
A onça-pintada tropeçou em uma câmera-armadilha ao caçar em um local frequentado por pecaris, uma de suas presas. Para os índios waoranis, nativos da área, as onças são espíritos ancestrais que visitam os xamãs em sonhos para lhes dizer onde há boa caça
Draper,
natural de Sacramento, na Califórnia, e veterano dos campos petrolíferos de
Prudhoe Bay, no Alasca, é o proprietário-operador da barcaça, chamada Alicia.
Ele trabalha sob contrato para a Petroamazonas. A estatal, em boa parte fora
das vistas do público, está adentrando o Bloco 31 com entusiasmo. Alguns anos
atrás, ambientalistas comemoraram quando impediram a Petrobras de construir
aquela mesma estrada. Mas, depois disso, a concessão foi entregue à
Petroamazonas, e agora a estrada de 14,5 quilômetros que envereda para o sul a
partir do rio Napo até o Tiputini está concluída, diz Draper. E tem mais: os
tratores já adentraram bastante a floresta do outro lado do rio Tiputini.
Esse avanço, sem dúvida, irá gerar
polêmica, pois representa nova intrusão no parque. Críticos argumentam, também,
que as reservas conhecidas do Bloco 31, de 45 milhões de barris, são pequenas
demais para justificar um investimento vultoso nessa concessão. A verdadeira
razão para a ocupação do Bloco 31, segundo eles, seria preparar a
infraestrutura para uma futura entrada no vizinho Bloco ITT, ameaçando assim a
vida selvagem e os grupos indígenas isolados que vagueiam pelas partes altas da
floresta. Draper não tem opinião própria sobre o assunto, mas diz que a companhia
está procurando perturbar o menos possível a área. “As intenções da companhia
são boas”, diz. “Mas, em minha opinião, nem deveríamos estar aqui.”
De volta ao rio, pergunto a Galo
Zapata, um dos biólogos da WCS em nosso barco, como a nova estrada afetará a
região. “Sei que a companhia fará de tudo para controlar o acesso à estrada”,
conta. “Mas nada impedirá que quíchuas e waoranis venham morar às margens
dela.”
Macacos-da-noite (Aotus vociferans) 35,5 centímetros
Tudo isso já aconteceu antes, explica
ele. Nos anos 1990, quando companhias petroleiras construíram em Yasuní a
estrada Maxus, houve medidas para bloquear o acesso a forasteiros. Só que os
moradores nativos do parque mudaram suas aldeias para a beira da estrada, e
começaram a caçar animais para vender no mercado negro. “Vai chegar muita gente,
e haverá grande demanda por carne de animais silvestres. Os impactos sociais
serão negativos. A história se repetirá.”
Rio abaixo, a paisagem nivela-se até
parecer uma vasta planície alagada espetada de açaís. Nosso GPS indica que
entramos no Bloco ITT, o marco zero da polêmica. Atracamos em uma margem baixa,
onde uma placa pintada à mão indica a comunidade quíchua de Yana Yaku.
O líder comunitário César Alvarado
emerge do telhado baixo de colmo de sua casa, e nos fala sobre seu tempo de
menino, quando as companhias petrolíferas chegaram. Os primeiros homens,
descreve ele, vieram em helicópteros que, antes de aterrissar, quase rasparam
nas altas palmeiras próximas à aldeia. Depois vieram barcaças carregadas de
alojamentos para os trabalhadores. E, por fim, tratores que derrubaram a
floresta e trouxeram os equipamentos de perfuração.
Alvarado, de 49 anos, descalço e
vestindo um agasalho esportivo folgado, nos conduz por uma trilha lamacenta
atrás das choças de Yana Yaku. Ele quer nos mostrar o que todos aqueles
trabalhadores vieram fazer ali, tanto tempo atrás, e o solitário monumento que
deixaram. Entramos em uma clareira sombreada e deparamos com uma espécie de
escultura, montada com canos, válvulas e junções hidráulicas. A coisa, de quase
5 metros de altura, está coberta de musgo, como um ídolo perdido de um filme de
Indiana Jones. Mas esquecida ela não está. Esse é o eixo em torno do qual gira
a questão da Yasuní-ITT: um poço exploratório tampado para o campo petrolífero
de Tiputini. Assim como outros semelhantes, é a razão de as autoridades saberem
que o Bloco ITT contém mais de 20% das reservas do Equador, 850 milhões de barris
de petróleo bruto da Amazônia. Difícil imaginar um testemunho mais gritante da
riqueza petrolífera do país.
Parauacu-do-Equador (Pithecia aequatorialis), 40,5 centímetros
O que acontecerá se os trabalhadores
voltarem? Alvarado é a favor de que explorem o subsolo de sua aldeia? “Queremos
saúde e educação para a comunidade”, diz ele. “Se tomarem cuidado com o
ambiente, nós os apoiaremos.”
Para a maioria dos waoranis, em
contraste, um futuro assim não parece nada convidativo. Em uma manhã nublada,
parto de caminhão da cidade de Coca com guias nativos, rumo ao sul pela chamada
estrada Auca. Construída pela Texaco nos anos 1970, a estrada dividiu ao meio
um território onde viviam waoranis. Para piorar, o nome que a companhia deu à
estrada, Auca, é como os inimigos designam os waoranis. Significa “selvagem”.
Nosso destino é a ponte sobre o rio Shiripuno, que dá acesso à Zona Intocável.
Ali no mínimo dois grupos waoranis, Taromenane e Tagaeri, vivem isolados do
resto do mundo.
Como muitos waoranis atuais, estas duas famílias combinam o velho e o novo. Voltando pra Bameno, sua comunidade no rio Cononaco, levam o produto de uma caçada tradicional: pecari, macaco e veado. Mas as roupas e os barcos vêm de fora
O caminhão desce veloz pelo asfalto
coleante, e vemos uma paisagem de ranchos e encostas desnudas: testemunhos do
afluxo irrefreado de colonos famintos por terra depois da construção da
estrada, 40 anos atrás. Várias comunidades empobrecidas de quíchuas e mestiços
ladeiam os caminhos secundários que partem da Auca.
Os waoranis já foram seminômades e viviam em casas cobertas com folhas de palmeira, como estas na comunidade de Cononaco Chico. Hoje, a maioria fixou-se e mora em casas de madeira e concreto
No lugar em que a estrada desaparece
no meio da folhagem, viramos à esquerda e seguimos rastros de pneus que sobem
uma encosta íngreme. Disseram-me que índios que nunca tiveram contato com o
mundo exterior apareceram fora da zona de exclusão, em uma área na qual a
prospecção de petróleo é acelerada. Logo nos vemos em um labirinto de estradas
secundárias que levam a uma crescente malha de poços e estações de bombeamento.
Fazemos uma curva fechada e topamos com um paredão de mata. Fim da estrada. À
nossa direita, uma nova sonda de perfuração ergue-se atrás de uma cerca de tela
de arame. Uma placa no portão identifica o local como o poço de petróleo de
Nantu E. À esquerda, um aglomerado de choças de colmo encostase à mata: a
aldeia Yawepare, dos waoranis.
Com lança, espingarda e machete, Minihua Huani, à esquerda, e Omayuhue Baihua procuram bichos nos arredores da comunidade waorani de Boanamo. Os nativos dessa aldeia são autorizados a caçar no parque, seu território ancestral
Vira-latas nos cercam latindo quando
descemos. Um sujeito musculoso, de calção e camiseta justa, pergunta-me o que
vim fazer. Convencido de que não sou da empresa petroleira, sugere conversarmos
ali perto, na choça comunitária sem telhado. Seu nome é Nenquimo Nihua, diz em
espanhol fluente, e está no cargo de chefe da comunidade por um mandato de dois
anos.
“Esta é uma área perigosa”, avisa. As
tensões agravaram-se desde que operários chegaram alguns meses antes, para
trabalhar no poço ao lado. Os moradores receiam que o barulho dos veículos e das
máquinas provoque uma reação violenta dos grupos não contatados. “Eles estão
sendo empurrados para fora da floresta”, prossegue Nihua. “Não queremos
conflito com eles. Queremos que se sintam tranquilos.”
As crianças menores de 14 anos se veem sozinhas em Bameno enquanto seus pais e irmãos mais velhos vão a uma festa em Kawymeno, a dois dias de caminhada. Autossuficientes, elas têm um avô por perto, a quem podem recorrer em caso de emergência
Nihua confidencia que alguns dos
nômades são seus parentes. “Minha sogra tem um irmão no grupo isolado.” Duas
dúzias deles estiveram nesse local há três semanas. O pai de Nihua os viu.
Acordou de madrugada com os latidos dos cães, acendeu uma lanterna na choça
comunitária e assustou-se ao ver os guerreiros nus – todos homens, brandindo
lanças e zarabatanas. Tinham acabado de entrar e, pelo visto, pretendiam
pernoitar ali. Com o coração saindo pela boca, o pai de Nihua voltou para casa
mudo. “Eles queriam descansar”, acrescenta Nihua. Na manhã seguinte, os guerreiros
haviam partido.
Apesar do parentesco, muitos waoranis
civilizados temem ser atacados pelos taromenanes e tagaeris. Mas os clãs
nômades também lhes despertam orgulho, são um poderoso símbolo de resistência
tribal e um lembrete de suas tradições ancestrais. Nihua diz que ele e sua
família deixam machados e machetes na mata para seus parentes. Cultivam hortas
para alimentá-los e fazem patrulhas armadas para protegê-los de intrusos que
poderiam lhes fazer mal. “Eis nossa posição”, diz Nihua, enchendo o peito.
“Chega de exploração de petróleo. Chega de entrada de colonos. Chega de
madeireiras.”
Depois de partir, perto do fim da
estrada Auca, chegamos a uma ponte periclitante e transferimos nossa carga para
um barco a fim de prosseguir pelo rio Shiripuno até o rio Cononaco, rumo à Zona
Intocável. Como os forasteiros só têm permissão para entrar se convidados pelos
waoranis, essa parte de minha jornada será feita com um guia waorani, Otobo
Baihua.
Baixo e robusto, de ombros largos e
sorriso fácil, Otobo, de 36 anos, diz que já trabalhou para companhias
petroleiras, mas pediu demissão, e foi procurar um modo de vida mais ecológico.
“Muita contaminação”, explica em um espanhol hesitante. “Vi muitos animais
morrerem. Ficava arrasado.” Hoje, ele trabalha com ecoturismo, guiando
viajantes aventureiros em visitas a seu povo, no coração da zona de exclusão.
Nas noites seguintes, ao pé da
fogueira nas aldeias ribeirinhas, os waoranis nos contam histórias sobre sua
turbulenta trajetória e sua desconfiança contra as companhias. Descrevem o
paraíso que perderam para a indústria petrolífera e aquele que ainda
compartilham com seus reclusos parentes. Dois dias depois, chegamos a nosso
destino, a aldeia de Bameno. Construções de concreto e cabanas de madeira
ladeiam uma pista de pouso gramada de 560 metros. Perto da pista, encontramos o
líder Penti Baihua, primo de Otobo, em acirrada discussão com um grupo de
moradores. Descalço e sem camisa, ele afasta-se do grupo e vem nos receber.
“O Bloco ITT é apenas uma pequena
parte de Yasuní”, diz Penti quando lhe pergunto sobre a iniciativa. Ele se
preocupa porque os waoranis não têm direitos de propriedade específicos,
reconhecidos pelo governo, sobre as terras dentro da Zona Intocável.
“Conquistarão este espaço, um poço de petróleo por vez, se não possuirmos esse
documento”, argumenta.
Penti nos leva a uma choça comunitária
no extremo da aldeia. Quer que eu conheça seu tio, um homem grisalho chamado
Kemperi. Um dos últimos xamãs-jaguar dos waoranis, Kemperi é reverenciado por
sua habilidade de se comunicar com os espíritos da floresta. Não sabe sua
idade, diz, mas já era adulto quando se juntou a um grupo de guerreiros que
emboscou e matou trabalhadores da Shell nos anos 1940.
Doze, no total, morreram nas mãos de
guerreiros indígenas. A companhia abandonou, depois, as operações no leste do
Equador, e só quando os missionários amansaram os “aucas” a exploração de
petróleo foi retomada nessas terras.
Quantos homens Kemperi e seus
companheiros mataram naquele dia? Ele conta nos dedos. Cinco, talvez seis. “Nós
os matamos para que nunca voltassem.” Mas, e hoje se os homens de capacete e
uniforme retornarem? “Se voltarem, nós os mataremos”, fala com naturalidade.
“Faremos como nossos pais e avós nos ensinaram.”
Depois de quase três semanas viajando
de caminhão, barco e avião anfíbio por Yasuní, sigo para a capital do país,
Quito, no alto dos Andes. Oferecem-me a oportunidade de conversar com o
presidente Rafael Correa sobre a Iniciativa Yasuní-ITT. Guardas perfilam-se
quando entro no Palácio Carondelet, construído na era colonial.
Carismático e inteligente, Correa, de
49 anos, vai direto ao assunto. A iniciativa, adianta-se ele, ainda está na
mesa de negociações. “Sempre dissemos que, se não recebermos o apoio
necessário, teremos de explorar petróleo, com a máxima responsabilidade
ambiental e social.”
Homens da comunidade de Rumipamba limpam vestígios de um derramamento de óleo de 1976. Pelo trabalho, recebem 450 dólares mensais, mas eles e suas famílias têm problemas de saúde, como erupções cutâneas crônicas causadas pela exposição ao óleo
A iniciativa contém um dilema real,
continua ele. “O Equador é um país pobre. Ainda temos crianças sem escola.
Precisamos de assistência médica, moradia adequada. Carecemos de muitas coisas.
O mais conveniente para o país seria explorar esse recurso. Mas também
entendemos nossa responsabilidade na luta contra o aquecimento global, cuja
principal causa é a queima de combustíveis fósseis. Esse é o dilema.”
A Petroamazonas está construindo – e, pra isso, desmatando – uma estrada de mais de 19 quilômetros no parque. Os ecologistas preocupam-se porque a via se destina a levar trabalhadores e máquinas das petroleiras ao vulnerável Bloco 31
No fim da entrevista, Correa parece
estar decidido. “Afirmo que iremos explorar nossos recursos naturais, como
todos os países”, diz. “Não podemos ser mendigos sentados em um saco de ouro.”
No entanto, conclui dizendo que está disposto a pensar em submeter a um
plebiscito a exploração de petróleo do Bloco ITT, decisão que muitos
equatorianos chamam de plano B.
Descendo os degraus do palácio
presidencial, reflito sobre a estrada que vi em obras no Bloco 31, e a violação
da natureza que ela representa. Seja qual for o resultado da Iniciativa
Yasuní-ITT, porções significativas de Yasuní continuarão sob cerco. “Se a
iniciativa fracassar, descobriremos como salvar parte dela”, havia dito Kelly
Swing quando conversamos na varanda da estação. Foi como se também ele já
estivesse enxergando além da decisão. “A cada concessão feita ao
desenvolvimento, a natureza sai perdendo.” Uma brisa farfalhou a copa das
árvores. Uma arara gritou ao longe. “Devemos usar nossa capacidade de domar a
natureza, nos apoderar de todos os recursos e levá-la ao limite?”, perguntou-me
Swing. “Saberemos qual é esse limite?”
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