quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Sonho de Xangai - A metrópole global da China tenta recuperar a glória do passado - desta vez nos próprios termos.


O mundo secreto do antigo abrigo antibombas de Xangai parece um universo paralelo. Lá em cima, na rua ensolarada, operários migrantes devoram marmitas de arroz e tofu enquanto funcionários de escritório vestindo impecáveis camisas brancas passam diante da pequena placa na calçada. No recesso sombrio, a jovem desce por uma escada até o lugar que ela conhece apenas como "0093".
Depois de passar pelas portas de metal, a jovem de 22 anos - Sheng Jiahui, mais conhecida pelo apelido de "Sammy" - embrenha-se por corredores. Em seu perpétuo crepúsculo, o 0093 ainda evoca a claustrofobia da guerra e da revolução comunista que pôs fim ao apogeu esfuziante de Xangai, quando a mescla das culturas ocidental e oriental fez dessa cidade a Paris do Oriente.
A porta abre-se e uma explosiva rajada de guitarra elétrica invade o corredor. Na pequena sala, sob um cartaz do lendário Jimi Hendrix, quatro garotas xangainesas - que formam com Sammy uma banda de punk rock, a Black Luna - começam a ensaiar. Esse é um giro curioso da história: o abrigo antibomba, antes símbolo de uma sociedade ferida e temerosa, tornou-se incubadora dos novos músicos de Xangai. O local de ensaio no 0093 já prestou bons serviços para mais de uma centena de bandas, revigorando uma cultura que hoje, como no passado, embaralha as fronteiras entre o Oriente e o Ocidente.
Sammy tira o blusão enquanto as outras continuam a ensaiar. Orange, de 20 anos, martela a bateria; Juice, de 23, toca os acordes com a mesma velocidade do novo trem Maglev de Xangai. Sammy começa a cantar e seu cabelo curto sacode para cima e para baixo em ritmo acelerado. Filha de uma cantora de ópera, ela está dando novo rumo ao talento musical da família. "Somos aves recém-nascidas, mas temos sonhos", berra. "O mundo todo vai ouvir a gente cantar."
Toda a cidade tem seu ritmo próprio, uma pulsação que a leva adiante. Em Xangai, é fácil perder-se em meio à incessante percussão de britadeiras e bate-estacas, tratores e guindastes de construção. A proliferação de arranha-céus e canteiros de obras faz parte da metamorfose pela qual está passando Xangai para ser a anfitriã da Expo 2010, a versão contemporânea da Feira Mundial, que será realizada de maio a outubro. Todavia, a ascensão da única metrópole chinesa de fato global está sendo impulsionada não só pelas máquinas mas sobretudo por uma cultura urbana que segue a própria batida - acolhendo o novo e o estrangeiro ao mesmo tempo que busca recuperar sua glória passada.
Os nativos de Xangai formam uma tribo urbana distinta do restante da China pela língua, pelos costumes, pela arquitetura, pela culinária e pelas atitudes. A cultura local, com frequência chamada de haipai (estilo de Xangai), originou-se da história peculiar da cidade como um ponto de reunião de mercadores estrangeiros e migrantes chineses. "Para os estrangeiros, Xangai é parte da China ‘misteriosa’", explica o comediante local Zhou Libo. "Mas, para os outros chineses, Xangai faz parte do mundo externo."
Xangai, ao contrário da Pequim imperial, não passava de um vilarejo de pescadores há um século e meio - mas já impregnada do sentimento de que estava destinada a um grande futuro. Era um sonho de estrangeiros, um porto para mercadores ocidentais que trocavam ópio por chá e seda.
Os edifícios erguidos à beira-rio, no trecho conhecido como Bund (palavra derivada do hindi), manifestavam o poder de nações estrangeiras, não o da China. Ali desembarcavam ondas de imigrantes, criando uma exótica mescla de banqueiros britânicos e dançarinas russas, missionários americanos e grã-finos franceses, refugiados judeus e seguranças siques com turbantes.
Na década de 1930, Xangai estava entre as dez maiores cidades do mundo. Mas não se parecia com nenhum outro lugar no planeta: era uma metrópole mestiça famosa pela facilidade de enriquecer - e pelos padrões morais relaxados.
Britânicos, franceses e americanos dividiam a cidade em setores próprios, erguendo belas mansões em ruas arborizadas. O comércio local exibia as modas e os produtos de luxo mais recentes. O hipódromo dominava o centro, cuja vida noturna oferecia de tudo, de salões de baile a clubes sociais, antros de ópio e bordéis. (Dizia-se que Xangai tinha mais prostitutas que qualquer outra cidade no mundo.)
Toda essa riqueza e efervescência, contudo, estava baseada no afluxo de vários milhões de migrantes vindos de outras partes da China, muitos deles fugindo de confrontos nas regiões rurais desde meados do século 19, quando ocorreu a sangrenta Rebelião de Taiping. Os recém-chegados encontraram refúgio em Xangai e ali fizeram a vida como mercadores e intermediários, carregadores e bandidos. Em meio a todas as dificuldades, forjaram a primeira identidade urbana peculiar no país, dando as costas para um império continental que ainda permanecia agrário. Embora as tradições familiares tivessem preservado suas raízes confucianas, os trajes eram ocidentais, e o sistema, capitalista. "Sempre fomos acusados de venerar o que vem de fora", diz Shen Hongfei, um dos principais críticos culturais de Xangai. "Mas a adoção e a adaptação de ideias estrangeiras foram os fatores que fizeram daqui o lugar mais avançado da China."
A cortina finalmente baixou em 1949. Durante as quatro décadas seguintes, os mandatários comunistas empenharam-se em punir Xangai por seu papel como uma espécie de Babilônia moderna. Além de forçar ao exílio a elite econômica e suprimir o dialeto local, Pequim apropriou-se de quase todos os recursos financeiros da cidade. Quando, nos anos 1980, tiveram início as reformas econômicas no país, Xangai teve de esperar por quase uma década até que as autoridades centrais permitissem seu desenvolvimento. "A pergunta que estava no ar era: Afinal, quando vai chegar a nossa vez?", diz Huang Mengqi, um designer e empresário de moda que tem loja nos arredores do Bund.
Agora chegou a vez de Xangai. A cidade está impaciente para recuperar a glória passada, só que, desta vez, nos próprios termos. Duas décadas atrás, os edifícios no Bund fitavam, para além do rio Huangpu, uma várzea agrícola e algumas fábricas dispersas; hoje a mesma área está repleta de arranha-céus, entre os quais o World Financial Center, com 101 andares. No total, a cidade já construiu mais de 4 mil edifícios de grandes dimensões. Para um local antes dominado por riquixás e bicicletas, o dado mais extraordinário talvez não seja vertical, e sim horizontal: quase 2,5 mil quilômetros de novas ruas e estradas foram abertas - há dez anos, elas simplesmente não existiam.
E agora vem a Expo 2010, uma iniciativa de prestígio agonizante que Xangai pretende ressuscitar como base de seu lançamento global.
A cidade já teria comprometido 45 bilhões de dólares, mais do que foi gasto nos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim. Boa parte desses recursos foram investidos em infraestrutura, incluindo dois novos terminais no aeroporto, a ampliação do metrô e uma reforma no Bund. Mas, dada a crise global, será possível que a Feira Mundial alcance a quantidade prevista de 70 milhões de visitantes? Xangai espera superar as rivais Pequim e Hong Kong, mas também acalenta uma ambição bem maior: tornar-se o centro financeiro e cultural do mundo no século 21. "Se alguma cidade tem essa chance, é Xangai", diz o professor Xiangming Chen, da Universidade de Fudan. "Mas a grandeza da cidade não pode ser alcançada só com obras civis. A questão é como reconstruir o senso comunitário que se perdeu com a demolição do velho e a construção do novo?"
Jin Qijing finge não notar o rato correndo sobre o encanamento em sua sala. O jantar está servido - um gorduroso prato de porco feito na panela com molho adocicado, chamado hongshaorou -, e a elegante senhora de 91 anos e coque grisalho não quer estragar a refeição da família.
Ninguém precisa lembrar a Jin de que as condições de sua vizinhança tradicional, ou lilong, pioraram muito desde que mudou para lá, ainda adolescente, em 1937. Na época, esse lilong - um dos milhares que abrigavam tradicionais casas chinesas com pátio interno, adaptadas para quarteirões com estreitas vias de inspiração europeia - fazia jus a seu nome: Baoxing Cun, ou "vila da riqueza e da prosperidade". Então, cada família ocupava uma casa, muitas vezes rodeadas de criados e puxadores de riquixá.
Atualmente, oito famílias apertam-se na casa assobradada de Jin - uma em cada aposento. Não há água encanada. A cozinha resume-se ao fogão elétrico. Mesmo assim, quando o neto de Jin a convidou e ao avô a se mudarem para um moderno condomínio no subúrbio, ela recusou. "Em que outro lugar", pergunta Jin, "eu iria encontrar esse sentimento comunitário?"
O fato é que esses antigos bairros de Xangai estão desaparecendo. Em 1949, pelo menos três quartos dos xangaineses viviam em lilongs; hoje, resta apenas uma fração deles. Contudo, as vielas densamente habitadas do Baoxing Cun ainda evocam o sentimento comunitário que fez dos lilongs o berço da cultura xangainesa. De manhã, ao retornar de uma feira livre, Jin passa pela loja que vende shengjian bao, bolinhos doces recheados de carne de porco, para o café da manhã. Ela conversa com um vizinho que pendura roupas para secar em uma das compridas varas que decoram a viela enquanto um homem, ainda de pijama, coloca água em suas plantas. "Já voltei!", grita Jin ao subir a escada escura até o quarto que ocupa no andar superior. Quando passa, os outros moradores põem a cabeça para fora de seus aposentos para cumprimentá-la.
Às tardes, Jin e suas amigas se reúnem na viela, acomodadas em bancos de madeira - um ritual que realizam há décadas. Como as áreas internas são apertadas, a vida no lilong transborda para a rua, transformando as vielas em salas de estar. Enquanto as mulheres conversam em dialeto xangainês, os vizinhos se aproximam para ouvir, rir e participar: um homem de terno cinza mal-ajambrado, um vendedor com sua bicicleta, uma mulher com distintivo do comitê de vigilância do quarteirão que recomenda a Jin que demonstre mais entusiasmo pela Expo 2010.
Hoje o papo bem-humorado das senhoras é ensombrecido por especulações. "Há rumores de que somos os próximos na fila da demolição", conta Jin. Para muitos xangaineses, as décadas de negligência oficial e a superpopulação transformaram a atmosfera de intimidade dos lilongs em algo asfixiante. Mas Jin teme que a demolição do Baoxing Cun leve à dispersão de suas amigas por subúrbios distantes. "Quem sabe quanto tempo ainda resta?", indaga ela.
Xangai empenhou-se mais que a maioria das cidades chinesas na proteção de seu patrimônio arquitetônico, preservando da destruição centenas de mansões e sedes de bancos erguidas antes da época comunista. No entanto, só uns poucos lilongs foram incluídos entre as áreas protegidas. Ruan Yisan, professor de urbanismo na Universidade Tongji, vem empreendendo uma campanha para salvar esses arquivos vivos da cultura da cidade. "As autoridades deveriam acabar com a pobreza, não com a história", diz ele. "Ninguém se opõe a que as pessoas vivam melhor, mas não deveríamos jogar fora o passado."
Pouco tempo atrás, uma equipe de operários do governo municipal despencou em Baoxing Cun a fim de pintar de cor creme as casas do lilong. Essa reforma de fachada pouco contribuiu para disfarçar as condições deprimentes do local. Apesar disso, Jin ficou contente ao saber que, pelo menos até o encerramento da Expo 2010, o Baoxing Cun não será demolido. "Aqui", diz ela enquanto um vizinho sem camisa se aproxima curioso, "nós somos como uma família."
Seguir a massa nunca fez parte da vida de Zhang Xin. Nascida em um lilong de Xangai durante a Revolução Cultural, essa artista de 42 anos gosta de chocar os espectadores com imagens de intelectuais chineses retratados como aves presas em gaiolas - e com ácidas críticas a sua cidade natal. "Somos dominados pela psicologia do colonialismo", diz ela. "Temos orgulho de dizer que valíamos a pena ser colonizados."
Por isso, foi uma surpresa para seus amigos quando Zhang se juntou à debandada rumo aos subúrbios. Milhões de xangaineses mudaram-se do centro da cidade nos últimos 15 anos, empurrados pela destruição dos lilongs e pelo sonho há muito reprimido de viver em locais mais espaçosos. A família de Zhang hoje mora em um apartamento de três quartos em um conjunto de arranha-céus com áreas gramadas impecáveis e um playground para sua filha de 7 anos, Jiazhen. Mas o condomínio fechado não tem nada da vida vibrante do lilong em que cresceu Zhang.
A migração para os subúrbios mais do que triplicou o espaço de moradia per capita nos últimos 30 anos; mas isso vem dilacerando a cultura de Xangai. Os vizinhos raramente se conhecem, a despeito de iniciativas comunitárias, como clubes e parquinhos infantis. Nessa etapa, os vínculos mais fortes entre os moradores talvez sejam seus interesses como proprietários.
Uma das vítimas da debandada urbana pode ser o dialeto local de Xangai. Ele vem perdendo espaço desde a década de 1950, quando Pequim lançou uma campanha para unificar o uso da língua no país, difundindo uma versão padronizada do mandarim. Os lilongs contribuíam para a sobrevivência do dialeto, mas, nos subúrbios, as famílias mantêm poucos contatos sociais. Mesmo assim, muitos daqueles que se orgulham de ser xangaineses usam o dialeto como um código secreto para indicar que são legítimos nativos da cidade - o que lhes rende melhor tratamento no comércio local.
Zhang, porém, logo se desencantou dos subúrbios. Agora a artista e sua família pretendem voltar ao centro da cidade. O motivo ostensivo é a matrícula de Jiazhen em uma escola particular, mas o fato é que Zhang também não quer privar a filha de um senso mais arraigado de identidade. "Todas as melhores lembranças que tenho vêm dos sons que ouvia aos 6 anos, quando acordava no lilong", conta ela. "As conversas na rua, os vendedores de camarão - a vida real."
Chen Dandan passa os dias suspenso dezenas de metros acima do centro de Xangai como operário de arranha-céus. Mas esse migrante de 26 anos só sente vertigem quando volta para casa e passa pela rua Nanjing, que abriga as lojas mais sofisticadas da cidade. Ainda vestindo o sujo macacão azul e o capacete amarelo de segurança, Chen para diante de uma vitrine da Gucci e namora uma Ferrari vermelha cujo preço equivale a 80 vezes sua renda anual de 3 500 dólares. "Há muita gente com dinheiro", comenta, "mas somos nós que estamos construindo Xangai."
Tal como no passado, o atual surto de crescimento da cidade não teria sido possível sem investimentos externos - e a abundante mão de obra de trabalhadores de outras regiões. Dos 20 milhões de habitantes, um terço é de migrantes sem permissão de residência. Muitos desses waidiren - forasteiros - vivem em comunidades bem organizadas. Outros, como Chen, são parte de uma população flutuante que forma o escalão mais baixo da sociedade xangainesa.
No passado, a maioria dos migrantes tornava-se parte da cultura da cidade, vivendo nos lilongs e aprendendo o dialeto local. Hoje, porém, em uma época de comunicações e transportes facilitados, esse tipo de assimilação é raro. Chen trabalha em Xangai há dois anos, mas nunca considerou a possibilidade de ali viver definitivamente - tampouco aprendeu alguma palavra de xangainês. E envia a maior parte de seu salário para a família, na vizinha província de Jiangsu.
Após percorrer a rua Nanjing, Chen toma o rumo do "dormitório" operário - quartos divididos por madeira compensada no 3o andar de um prédio em obras. No outro lado da rua fica o Park Hotel, de 22 andares, o mais alto edifício da Ásia quando ficou pronto, na década de 1930. Também ele foi construído com mão de obra migrante. Chen não será bem-vindo a Xangai na Expo 2010. Durante os seis meses de duração da feira, todas as obras serão interrompidas na cidade, e a maioria dos trabalhadores temporários terá de voltar para casa. Chen, contudo, pretende retornar. "Enquanto continuar a crescer", diz ele, "Xangai vai precisar de gente como eu."
Quando não está no abrigo subterrâneo tocando punk rock, Sammy costuma ficar empoleirada no 24o andar de uma nova torre residencial no centro da cidade, onde fica o apartamento que divide com quatro outras jovens solteiras. Em 1987, o ano em que ela nasceu, esse prédio de 28 andares se destacaria; hoje há centenas de outros mais altos. Pela janela, ela aponta, além do rio Huangpu, para a pirâmide invertida que vai ser o pavilhão principal da Expo 2010.
A explosão urbana de Xangai vai continuar por muito tempo após o encerramento da exposição. Todas as demolições e construções ressaltam uma característica dos xangaineses: a obsessão pelo novo. As parceiras musicais de Sammy dizem que ela é "a típica jovem de Xangai", não só por se voltar para o exterior em suas preferências musicais (a roqueira Avril Lavigne), de moda (a revista japonesa Vivi) e de estilo de vida (a decoração de sua casa tem mais a ver com o seriado Friends que com Confúcio). Mas sobretudo pela facilidade desenvolta com que mescla as novas ideias a seu estilo xangainês.
Quando recentemente a banda Black Luna fez fotos promocionais, as roqueiras usaram vestidos formais com babados, e Sammy apareceu com uma gargantilha da década de 1930. "Queríamos capturar o glamour da antiga Xangai", diz ela. Mas não por nostalgia. Era só o caso de uma banda xangainesa antenada revirando a história em busca de um detalhe estiloso. Nessa cidade que sempre se renova, o ritmo é tão acelerado que o passado pode acabar virando o futuro. E o velho pode ser renovado outra vez.
REVISTA NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL MARÇO 2010

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